A memória pode consolar a perda das perdas? Vinda de uma família de artistas, Marília Pêra sempre defendeu com orgulho a história dos seus, enaltecida por ela com um talento nato. A morte em dezembro do ano passado deixou lacunas irreversíveis ao se pensar nas muitas vidas que jamais ganharão os contornos de sua criação precisa. Assim, a fotobiografia “Marília Soares Marzullo Pêra”, feita em parceria com a irmã Sandra, é agridoce: cristaliza lembranças ao mesmo tempo que alarga o espanto por uma despedida tão precoce.
Viva e atenta, embora debilitada pelo câncer, a atriz viu o livro pronto e, segundo seu desejo, estaria presente também no lançamento, marcado inicialmente para o dia 14 de dezembro. Para evitar o desgaste com os autógrafos, ela sugeriu comprar uma câmera e, no lugar da tradicional assinatura, daria uma foto como recordação. A morte, dias antes, pontuou os eventos de maneira diferente: a obra chegou às livrarias no dia 22 de janeiro, quando Marília completaria 73 anos. A saudade se mantém inabalável na irmã caçula, a quem por vezes coube o papel de filha, mas nem esse sentimento é capaz de tornar seus dias melancólicos. “Melancolia é uma palavra musical, mas desafina”, conclui Sandra, às voltas com preciosas reminiscências. Tenho todas as lembranças comigo. A mais lindinha de todas aconteceu uma semana antes de ela morrer. Estávamos na sala de casa e, para distrair a cabeça, ela quis ouvir uma entrevista que ela havia dado para a rádio MEC. Fiquei sentada ao seu lado. Ela ficou sorrindo. Vi que aquilo fez um bem e falei para ouvirmos as bases do CD que ela estava gravando. Marília estava cantando lindo, baixinho... Ficamos ouvindo, conversando, fazendo planos — conta ela, de 61 anos, que acrescenta: — No domingo anterior à morte, ela teve muita vontade de comer uma maminha (risos). Fomos a uma churrascaria, e ela comeu maminha, polenta e ainda bebeu cerveja.
Apesar do lamento intenso, a atriz conta não ter se esquivado de ver os registros da irmã. Diferente dos sobrinhos e de Bruno Farias, marido de Marília, Sandra assiste aos episódios do humorístico “Pé na cova”, por exemplo. Olha, busca e vasculha tudo. Seria uma forma de costurar a distância? A ela, resta a constatação : “Ah, meu Jesus, ela não está mais aqui”. Ao relembrar momentos ao lado de Marília — muitos registrados na fotobiografia, motivos de inúmeras alegrias —, Sandra ainda se detém num dos episódios mais amargos da luta dela contra a doença, descoberta um pouco antes do carnaval de 2014. Em outubro do ano passado, após uma tomografia, o oncologista responsável pelo tratamento da artista afirmou que ela teria seis meses de vida. A informação, dita de forma bruta, acelerou o processo da morte, segundo Sandra.
— O médico disse isso para ela sem que ninguém perguntasse. “Você já parou para pensar na sua finitude? A partir de agora, você vai sentir muita falta de ar, vai perder os movimentos de não sei onde. Você tem seis meses de vida”. Ela ficou catatônica e nunca mais voltamos lá. Marília falava comigo: “Ele precisava dizer isso?”. E ficou se perguntando: “Então, eu vou morrer em abril? Em abril?”. Eu dizia que não, que ele era limitado. Sofremos muito juntas. Foi uma sentença. O cara que estuda os tumores precisa entender que em volta dos tumores existe uma pessoa ali, frágil — reforça ela, preferindo não revelar o nome do profissional: — Ele pode ler isso e dizer: “Mas eu tinha razão”. A questão não é essa. Ele deveria ter falado com a família antes e a gente decidiria como agir.
Em meio ao severo tratamento contra o câncer, Marília se esmerou para abraçar os prazeres de seu ofício. Cantar, entre eles, a deixava especialmente feliz. Empolgada e afinada, começou a gravar um CD pela Biscoito Fino, mas o material não deve ser lançado. Trata-se de um desejo da própria artista, que apenas havia concluído a voz-guia, a base do novo trabalho. Dona de um ouvido exigente, não admitia que as canções fossem apreciadas pelo público sem terem sido devidamente finalizadas. Ela me pediu: “Pelo amor de Deus, não deixa isso sair”. E vai ser assim. A sensação que eu teria caso deixasse é que eu a estaria traindo. Ela não está mais aqui, mas é como se, de algum lugar, ela estivesse. Não sei explicar, é muito difícil. Não tem nada a ver com religião, eu não sou assim. Mas é muito complicado não tê-la, é muito esquisito, dolorido ainda. Espero que com o tempo as coisas se acalmem — ressalta Sandra, que afirma ter planos de fazer um acervo vocal dela: —Tenho coisas riquíssimas, compactos feitos há 50 anos.
Nos sonhos de Marília, ela mesma teria a chance de narrar este episódio num documentário.“Vou contar isso sem peso”, lembra Sandra os dizeres da irmã, cuja maior angústia era a possibilidade de não voltar a andar. Morreu dormindo, enfim, com inúmeros desejos suspensos.
A memória pode consolar a perda das perdas? Tensionada entre a cor forte da existência e o espanto da morte, a lembrança resiste valente nas imagens e sons, rastros de uma mulher preocupada em trançar os muitos fios de sua história, à revelia do tempo. Em testamento, contudo, a atriz pediu que ela não fosse grafada por outras pessoas.
— Ela mesma começou a escrever sua biografia, mas está tudo parado. Temos que respeitar o que ela pediu. Nossa vida toda foi feita de trabalho e amor, é o que temos uma pela outra — enaltece Sandra, guardiã das recordações da família.
Postado Por:Daniel Filho de Jesus