A cegueira privou a advogada Deborah Prates de trabalhar em duas
ocasiões. A primeira vez ocorreu há sete anos, quando ela perdeu a visão
ao sofrer ruptura do nervo óptico por causa do medicamento usado para
tratar uma pneumonia. Na segunda, a cegueira foi da Justiça. Adaptada à
nova condição, ela deixou de exercer a profissão com autonomia há seis
meses, quando foi impedida de protocolar petições em papel por causa da
implantação do Processo Judicial Eletrônico (PJE).
No mês passado, um pedido feito pela advogada
foi negado pelo ministro Joaquim Barbosa, presidente do Conselho
Nacional de Justiça (CNJ). A decisão do ministro afetou pelo menos 1.145
advogados cegos registrados no país desde 2002 pela Ordem dos Advogados
do Brasil (OAB) — 27 deles atuam no Rio. E virou bandeira para essas
pessoas.
Na quinta-feira, uma comissão de
acessibilidade formada pelo Conselho Superior da Justiça do Trabalho irá
se reunir em Brasília para discutir o assunto. A ideia é condicionar a
informatização obrigatória das petições à instalação de um sistema de
navegação para cegos, com leitura em tela.
“O processo eletrônico é inevitável. Só que aconteceu sem
estudo prévio e sem tempo de adequação. Não se pode privar o advogado de
ter o processo em papel. Os deficientes visuais não estão conseguindo
trabalhar. Eu chamo isso de apartheid digital”, critica o procurador
federal aposentado Emerson Odilon Sandrim, que integra a comissão.
Hoje, o uso de um sistema com leitor de tela
para deficientes visuais é incompatível com o programa implantado pelo
CNJ. “Será preciso criar um novo programa. Eu vejo com tristeza essa
situação, porque a acessibilidade no país ainda não está sendo
respeitada. Você pode ter certeza que ela (Deborah Prates) não está
sozinha. É uma luta pela dignidade”, argumenta Luiz Claudio Allemand,
presidente da Comissão de Tecnologia da Informação da OAB.
Falta de visão
Quando perdeu a visão, há sete anos, a advogada
Deborah Prates se viu obrigada a fechar um escritório com cerca de dez
funcionários na Avenida Rio Branco, no Centro, próximo ao Fórum. Na
época, era responsável por cerca de mil processos cíveis e empresariais.
“Ninguém quer um advogado cego. As pessoas
acham que a deficiência sensorial equivale à deficiência intelectual”,
relembra. Em apenas duas semanas, vivenciou o que chama de ‘apagar das
luzes.’
Com a cegueira, a advogada foi a Nova York, nos
Estados Unidos, em busca de um cão-guia, um auxílio que se tornou
fundamental para a sua autonomia. Após 30 dias de treinamento intensivo
em uma fundação especializada, voltou ao Brasil com o labrador Jimmy.
Hoje, dá palestras e integra comissões ligadas aos Direitos Humanos da
OAB.
‘O ministro rasgou a Constituição’ - Deborah Prates, advogada cega
Desde que ficou cega, há sete anos, a advogada
Deborah Prates luta por autonomia. Nos últimos seis meses, precisou de
ajuda para dar entrada em petições pelo Processo Judicial Eletrônico,
inacessível a programas usados por deficientes visuais.
1. Como a senhora deu entrada às petições?
— Continuo tendo de pedir a terceiros para enviar petições. Às vezes,
peço a um amigo, que me faz a gentileza de me ajudar em casa. Em outras,
preciso sair de casa para enviar através de um setor da OAB. Fui banida
da profissão. Não posso advogar, porque não tenho acessibilidade. Perdi
a minha independência.
2. Como a senhora avalia a atitude do ministro Joaquim Barbosa?
— Ele negou a acessibilidade, que é prevista na Constituição (leia mais
abaixo). Tirou a minha dignidade. É uma violação dos direitos humanos.
3. Há outros advogados cegos no Rio que aderiram à causa?
— Ninguém quer se envolver, porque é o ministro Joaquim Barbosa. Estão
na aba, para ver o que vai acontecer. Para indeferimentos de liminar,
não cabe recurso. Estou pleiteando uma audiência com o ministro, para
que ele reveja a decisão. Ele é tão arbitrário que está de férias. Mas
tem a maior boa vontade para prender os envolvidos no Mensalão. O
problema não é só para os cegos. Há municípios que não têm banda larga.
4. Como a senhora administrou o trabalho com a cegueira?
— Fiquei cega por causa do tratamento de uma pneumonia, que causou o
rompimento do nervo óptico. Quando os clientes souberam, foram pagando o
que deviam, encerrando o experiente. Fechei o meu escritório para
causas cíveis e empresariais. Em 30 dias, perdi tudo. Consegui
aposentadoria por invalidez. Aí, entrei em parafuso. Hoje, integro a OAB
Mulher e a Comissão de Direitos Humanos da OAB. Luto pelos interesses
coletivos.
5. Como foi lidar com a cegueira e o preconceito?
— Ninguém quer um advogado cego. As pessoas acham que a deficiência
sensorial equivale à deficiência intelectual. As pessoas saem fora
mesmo, porque veem a deficiência como uma doença contagiosa. É o olhar
assistencialista que está hoje no Poder Judiciário, no CNJ.
6. Como assim?
— O ministro Joaquim Barbosa nutre um olhar assistencialista. Acha que
nós, cegos, precisamos ser ajudados. Não há uma visão de cidadania, como
determina a convenção da ONU sobre os direitos da pessoa com
deficiência. O ministro rasgou a Constituição.
O primeiro juiz gego do Brasil
Em 2009, ele se tornou o primeiro
juiz cego do Brasil ao ser nomeado desembargador do Tribunal Regional do
Trabalho (TRT), numa cerimônia de posse que contou com a participação
do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva em Curitiba, capital
paranaense.
Presidente da comissão de acessibilidade do TRT, Ricardo
Tadeu Marques da Fonseca será o responsável pela discussão levada a
Brasília da informatização dos processos. “Não vou aceitar medidas
paliativas. Não queremos nada menos do que acessibilidade total. As
medidas para que isso seja possível não são onerosas. É só uma questão
de diálogo”, argumenta.
O advogado Leondeniz Candido de
Freitas, assessor do desembargador e apontado como especialista em
informática, afirmou que a discussão será ampliada. “Vamos verificar o
que pode ser feito para que o processo judicial eletrônico se torne
acessível para pessoas com deficiência visual, auditiva e física. Não
podemos ficar numa situação de dependência, onde a autonomia é
prejudicada”, explica.
Assim como a advogada Deborah Prates, o
desembargador Ricardo Tadeu já enfrentou preconceito no Judiciário em
1990, quando foi impedido de concluir um concurso para juiz, em São
Paulo, por ser cego. “Na época, se entendia que cego não poderia ser
juiz e fui afastado”, lembra. No ano seguinte, passou em concurso para o
Ministério Público em Campinas, São Paulo.
A justificativa
O ministro Joaquim Barbosa, que preside o CNJ,
disse não haver razões para conceder liminar, sugerindo auxílio de
outras pessoas para que a advogada enviasse petições. “O motivo
explanado pela reclamante, no sentido de necessitar de ajuda de
terceiros para o envio de uma petição eletrônica ante a inacessibilidade
do sistema para deficientes visuais, não configura o perigo de dano
irreparável ou de difícil reparação”, justificou.
Sem agenda
Em nota, o CNJ explicou que foi
determinada a suspensão da reclamação até o julgamento de outro
procedimento, feito pela OAB, para ‘evitar decisões conflitantes’. Sobre
o pedido de audiência feito por Deborah Prates, o CNJ alegou não ter a
agenda do ministro Joaquim Barbosa em 2014.
Convenção da ONU
Em 25 de agosto de 2009, o então presidente
Lula assinou o decreto 6.949, aderindo à Convenção Internacional de
Proteção aos Direitos dos Deficientes da Organização das Nações Unidas
(ONU), de 30 de março de 2007. Foi o primeiro tratado internacional
incorporado ao Brasil. A convenção, redigida com o auxílio do
desembargador Ricardo Tadeu Marques da Fonseca, foi recomendada pelo
próprio CNJ, recomendando acessibilidade aos deficientes.
Constituição
De acordo com a comissão montada pelo Conselho
Superior da Justiça do Trabalho, o ministro Joaquim Barbosa feriu a
Constituição Federal ao negar o pedido feito pela advogada Deborah
Prates.
Postado Por:Daniel Filho de Jesus