Foi como se uma tempestade de fogo tivesse invadido os olhos de Vanessa. Raios e um rio vermelho eram tudo o que ela via enquanto tentava enxergar. A sensação surgiu no meio de uma festa, no Paranoá. Era sábado, 19 de junho de 2004. O reggae com mensagens de paz ainda tocava ao fundo, quando uma briga começou. Dois homens agrediam um terceiro, que estava sozinho.
Em desvantagem, ele jogou uma garrafa de cerveja vazia para cima, sem alvo certo, sobre o público que dançava em um clube. Ali era proibido vender bebida em recipiente de vidro, justamente para evitar confusão. Mesmo assim, lá estava o frasco, que voou. Bateu contra uma pilastra e a parte de cima, a mais fina da garrafa, desprendeu-se do resto, tornando-se uma arma letal e afiada, solta no ar.
Em meio a aproximadamente 200 pessoas, Vanessa de Jesus Campos Soares, à época com 20 anos, foi a escolhida. Em um movimento intuitivo, ela virou-se para ver o que ocorria. Nesse momento, o pedaço de vidro voador acertou-a nos
olhos. O sangue escorreu. Vanessa, que antes dançava feliz com familiares, viu o mundo ficar vermelho. Na hora, pensou que tinha sido um corte profundo na testa. “Cheguei à festa às 23h50. Saí de lá pouco depois da meia-noite. Só entrei para passar por isso”, acredita.
Assustado, o público começou a deixar a casa de festas. Ninguém ofereceu carona à moça ferida — talvez por medo de sujar os bancos dos carros. Quando parentes de Vanessa discavam o número do Corpo de Bombeiros, uma viatura da Polícia Militar aceitou levá-la ao Hospital do Paranoá. Sem saber da gravidade dos ferimentos, os familiares não foram direto para o Hospital de Base, para onde receberam encaminhamento mais tarde.
Por volta da 1h, Vanessa já estava no Plano Piloto. Esperou até as 18h do dia seguinte para ser operada no Base. Tinha 38 cortes em toda a face, além dos olhos perfurados. Mesmo assim, repetia para si mesma: “Quem tem Deus tem tudo”. O rosto bonito, moreno, de traços delicados, ficou irreconhecível. “Minha mãe foi até o Base procurando por uma ‘moça que deu entrada com um corte na testa’. Passou por mim e não me reconheceu. Ouvi a voz dela e disse: ‘Sou eu, mãe. E eu não consigo enxergar’”, relatou Vanessa.
EsperançaHoje, aos 26 anos, Vanessa tem, pela primeira vez depois de ficar cega, uma perspectiva de voltar a enxergar. Há meses, a jovem apresentava sinais de depressão, quando recebeu visita da assistência social da Subsecretaria de Proteção às Vítimas de Violência (Pró-Vítima). Com o apoio, conseguiu consulta com uma especialista no Hospital da Universidade Católica de Brasília. A médica estudou as possibilidades e Vanessa deve passar, em breve, pelo transplante de córnea e por mais duas cirurgias oculares.
No próximo mês, provavelmente, Vanessa saberá a data da operação. “Todo esse tempo, eles (os médicos) diziam que estavam tentando salvar meu olho esquerdo. Fizeram sete cirurgias. O direito já chegou ao hospital perdido. Agora tenho fé de que posso voltar a ver.”
Nem mesmo a medicina entende como o estilhaço de vidro causou tanto estrago. “As pessoas que estavam perto de mim sofreram pequenos cortes e só. Eu fui a sorteada”, lembrou. Vanessa tenta manter-se otimista. Diz ter sorte em estar viva. “Eu sou mais feliz do que triste. Tenho amor da minha família, uma mãe carinhosa, filhos. E um marido que não me abandonou”, alegra-se.
Os momentos de tristeza, é claro, existem. Certo dia, Daivison, o filho mais novo, hoje com 6 anos, em fase de alfabetização, chegou da escola com uma pasta cheia de trabalhos, ansioso para mostrar à família o que aprendeu. “Meu coração ficou esmagado por não poder ver”, desabafou a mãe.
Quando o acidente ocorreu, Vanessa havia voltado a estudar. Dois meses antes, tinha feito matrícula e terminava o primeiro grau. Por conta de uma gravidez, aos 15 anos, a menina interrompeu os estudos. Em junho de 2004, ela acabara de chegar a Brasília, vinda do Maranhão. A vida nova em Brasília seria a chance de recomeçar. Vanessa estava grávida do segundo filho, Davison. Queria ficar mais perto da mãe dela, a empregada doméstica Maria Lúcia, hoje com 46 anos, moradora do Paranoá. À época da trágica festa, Davison tinha apenas cinco meses.
Vanessa sofre por não conhecer as feições do garoto. Ela também é mãe de Gabriela, 10 anos. “Ela (Gabriela), eu fico imaginando, porque já tinha cara de mocinha. Mas o meu menino, eu não sei como está. É uma sensação de angústia não conhecer o rosto do próprio filho”, afirmou.
O homem que mudou o rumo da vida de Vanessa é um vizinho. Às vezes, alguém da família passa por ele nas ruas do Paranoá. Dona Maria Lúcia lhe disse umas verdades. O rapaz baixou a cabeça. Ainda assim, nunca apareceu para se desculpar. Vanessa sente-se como se a vida tivesse parado. Para ela, ainda é 2004.
Postado Por:Daniel Filho de Jesus