Da porta da casa simples de madeira, na Quadra 2 do Varjão, Helena Pereira Osório, 66 anos, gosta de espiar a vida, enquanto toca violão. Distribui sorrisos a quem quer que passe. Mas nem sempre foi assim. Há pouco tempo, ela esteve perto da morte. Sozinha, passava dias e noites na cama. Teve hanseníase, problemas de coração, rins, fígado e pressão alta. A tristeza, porém, doía mais.
O barraco se transformou em depósito de entulho. Ratos e baratas passeavam por ali. O abandono veio com a morte do marido, Ermínio Gomes de Oliveira, catador de material reciclável, há cinco meses. Helena perdeu as forças. Ela, que nunca quis ter filhos, viu-se completamente só. “Não queria colocar ninguém no mundo para sofrer o que eu sofri”, disse a mulher, que um dia foi menina sem carinho, nas roças do Piauí.
Quando as doenças tomaram conta, Helena entregou-se à própria sorte. Demorou até que alguém tivesse notícias dela. Preocupada, a amiga e vizinha Valquíria de Lima, 52 anos, decidiu visitá-la. Quando chegou ao barraco, encontrou o cenário de sujeira e abandono. Fez Helena levantar-se da cama e procurar um médico.
Depois disso, Valquíria tornou-se cuidadora voluntária de Helena. Encontra espaço, todos os dias, entre as obrigações com a família e as tarefas domésticas, para dar os remédios nos horários certos à amiga e passear com ela. É Valquíria quem leva Helena às consultas médicas e prepara almoço, café e jantar. Além disso, cuida da limpeza da casa e faz a feira do mês. Recebe de volta carinho e gratidão. “A recompensa é Deus quem dá. Sinto um bem muito grande em ajudar”, disse Valquíria.
MobilizaçãoNo mês passado, Valquíria organizou um mutirão de limpeza na casa de Helena. Convocou a família inteira para ajudar. Bateu à porta da Administração Regional do Varjão e pediu caminhões emprestados para carregar o lixo. “Tiramos três carros cheios de entulho daqui. Não sobrou nada. Nem os móveis, que eram velhos demais, acumulavam poeira e pioravam as doenças dela”, relatou Valquíria.
O barraco pequeno ganhou aconchego. Tem cheiro de lar. As panelas brilham. O chão reluz. A cama fica sempre arrumada. Um rádio velho repousa sobre o forro de crochê. Há até uma boneca, bem grande, por sinal, encostada na parede. Ela recebeu o nome de Maria Bonita. “Acorda, Maria Bonita…”, Helena cantarola.
É hora de superar as lembranças da infância castigada pela violência em
família. Aos 66 anos, ela brinca de boneca. Penteia os cabelos e arruma as roupas do brinquedo. “Filho meu, eu não tive, não. Mas dos outros, eu cuidei muito”, relembrou a idosa, que trabalhou durante 22 anos como empregada doméstica no Plano Piloto.
Uma pequena imagem de Nossa Senhora Aparecida, para a qual Helena reza todos os dias, assiste a tudo. “Eu queria uma santinha maior”, confessa. Helena também precisa de um fogão e de uma geladeira. Os dela estão nos últimos suspiros.
RevoluçãoHelena parece outra pessoa, diferente daquela mulher que não gostava mais da vida. Está pronta para superar as doenças. Ganhou o apelido de “Baixinha alegre” no hospital onde se trata — ela mede, no máximo, 1,50m. Voltou a dedilhar canções no violão envelhecido, enfeitado com adesivos da Virgem Maria. Canta com voz doce cantigas de outros tempos. “Não sou mais uma menina daquelas que brincam de pique. Mas alegria, tenho demais. Onde eu vou eu levo a boa simpatia”, afirmou. Até Lessie, a cadela de estimação, melhorou a aparência. “Ela só falta falar agora, de tão inteligente.”
Helena chama Valquíria, carinhosamente, de fiscal. “Ela tem o apelido de delegada também. Quando vem chegando, eu já corro para ver se tudo tá em ordem”, brincou. “A Valquíria é minha amiga, irmã, filha.” As roupas não ficam uma semana sem lavar. Helena recuperou a vaidade. Veste calças pretas com barra de renda, combinadas com uma blusa de bordados delicados e colete bege. Valquíria olha para a amiga e sorri. “Só de pensar que ela andava tão triste e calada…”
IniciativaValquíria, casada, paraibana, mãe de 14 filhos — a caçula tem 6 anos —, avó de 12 netos e com dois bisnetos, é caridosa por natureza. Cuida de tudo e de todos. Sem se esquecer dela mesma. O rosto moreno está sempre maquiado, sem rugas. Os cabelos grisalhos parecem bem tratados. Ganhou fama de “delegada” por tomar a frente nas reivindicações por melhorias na quadra. “Fico pensando na quantidade de idosos que estão na mesma situação que dona Helena, jogados à própria sorte, e ninguém ajuda.”
Em sua prática diária de vida, a cuidadora mostra que tem lições para dar: “O povo fala que em comunidade carente ninguém se ajuda, mas é mentira. A gente é pobre, mas pobreza não é defeito. Aqui tem gente honesta e trabalhadora. Eu faria isso por qualquer uma dessas pessoas. Tudo que a gente planta nasce de novo”. Quando veio para Brasília, nos anos 80, Helena sonhava ter uma casa para morar. Encontrou a família que nunca teve. Agora, quer viver muito mais. Só para sentir felicidade.
Postado Pór:Daniel Filho de Jesus