Com novo livro nas lojas, “Tempos vividos, sonhados e perdidos”, o ex-craque e atual cronista esportivo discute o futebol passado e presente, diz que Neymar pode ficar abaixo só de Pelé e vê melhoras no Brasil depois de tempos sombrios.
O distanciamento era para eu ter condições de ter outra atividade. Eu precisava me separar do futebol para poder ser médico. Recebi um convite inesperado para ir à Copa (pela Bandeirantes) e me surpreendi por aceitar. Quem sabe não era, inconscientemente, um desejo de voltar a ter contato com o futebol. A experiência com Rivelino, Gérson, Armando Nogueira, me fascinou. A Bandeirantes queria que eu continuasse, tentei conciliar, mas vi que ficava dividido entre futebol e medicina. Até que decidi voltar ao futebol. Foi um alento, me fascinou.
Isso me incomodou muito. Tanto foi um incômodo permanente que foi um dos motivos que me levaram a sair da TV. Não me sentia à vontade, eu me esforçava para ser bom profissional, mas era muito tenso entrar na TV, botar a cara. Claro que dava prazer, orgulho, mas era tenso. Dos 20 anos que comento futebol, fiquei no máximo cinco na TV. Me incomodava. Eu já tinha a ideia de sair, mas aí surgiu o convite da Espn, eu gostava dos programas, do Trajano, mas durou pouco tempo. Era uma prova permanente a vencer. Evito aceitar convites para ir a programas porque fico tenso, é meio doloroso. Como colunista eu me sinto mais à vontade, trabalho isolado.
Ao opinar, você tem medo de ser injusto? Tem medo de como o criticado receberá?
Primeiro, o que me preocupa é escrever algo interessante, com conteúdo. Já tive, hoje não tenho qualquer constrangimento de fazer uma crítica dura, desde que não seja pessoal. Os jogadores aceitam menos a opinião de um ex-jogador do que de um jornalista. Acham que estamos traindo a classe. Esse é um dos erros dos comentaristas ex-jogadores, a preocupação em não desagradar. Eu já me libertei. Eu me sinto um comentarista que foi jogador e não um ex-jogador que é comentarista. Claro que me preocupa cometer uma injustiça. Mas minha opinião é técnica.
Como desenvolveu a escrita? Foi o hábito de ler desde os tempos de jogador?
Até virar colunista, eu nunca tive hábito de escrever. Na faculdade de medicina, passei o tempo todo só com um caderninho anotando dados, enquanto outros anotavam tudo. Sempre tive hábito de ler, não de escrever. Quando comecei, me senti preso, mas gostei de escrever. Escrevo por associação: digo uma coisa, associo com outra. É uma associação de ideias, que é uma das origens do pensamento. Toda a preparação é manuscrita. Escrevo a caneta o tempo todo, escrevo de novo, risco. Quando tenho que mandar a coluna é que passo para o computador.
Quantos jogos você vê por semana?
Muitos. Isso até me incomoda. Estou ficando com a sensação de que tenho obrigação de ver tudo para me informar. Vejo demais, e hoje tem jogo demais em muitos canais. Tinha hábito de ler com muito mais frequência, gostava. Hoje é difícil, tenho dificuldade de me concentrar numa coisa que não tenha a ver com futebol. São os tempos modernos, o tempo da informação em grande quantidade circulando. E fico com receio de não estar me informando. Fico conflituoso com isso, preciso ler mais, me interessar por outras coisas. Tenho tentado selecionar um pouco. E, além dos jogos, vejo os programas de esporte para ter informação.
O que te dá prazer de ver?
‘Os jogos do Guardiola sempre têm uma novidade’
Alguns
grandes jogos. Real Madrid, Barcelona e Bayern vejo praticamente todos
os jogos. Os que gosto mais são o Barcelona, pelo Messi, pelo Neymar.
Gosto de ver o Bayern e agora o City por causa do Guardiola. Pelo
seguinte: se você vê 20 jogos, 19 são uma repetição tática. Os jogos do
Guardiola sempre têm uma novidade. O Barcelona não tem novidade, mas tem
muita qualidade técnica. Como o Real Madrid. Os times brasileiros vejo
ao máximo. E tenho gostado, houve um avanço no futebol brasileiro do
ponto de vista coletivo. O que não faço é colocar duas TVs e ver dois
jogos ao mesmo tempo. Não dá. Eu me concentro nos detalhes de um jogo.
- TostãoSobre o técnico do Manchester City
Que avanços você viu no Brasil?
Houve um período de quase 20 anos em que se fez no Brasil, coletivamente, o que há de pior. Muito chutão, bola longa, trombada, uma coisa horrível. O Corinthians do Tite começou e, depois da Copa, aqui se acelerou uma tentativa de jogar de forma mais moderna. Mas a qualidade individual você fica pinçando. Na média, é fraca. Há poucos jogadores de qualidade. O Brasil ainda produz um número enorme de bons jogadores, não diminuiu. Exporta para o mundo todo. O que diminuiu foi o número de jogadores excepcionais. Mas há uma tendência de crescimento. Os jogadores que estão fora estão crescendo e a tendência das seleções europeias nos próximos anos é de queda. Espanha e Alemanha têm jogadores chegando no fim, precisam mudar e têm poucas alternativas. O Brasil dá impressão de ter jogadores crescendo. Não temos um grande jogador de meio-campo. Isso para mim é uma coisa absurda. Se pegar dos 20 ou 30 melhores do mundo na posição, não há brasileiros.
Qual a razão?
Só agora que os técnicos perceberam a mudança. Ficaram obcecados pelo meia de ligação, como Ganso, que fica entre o meio-campo e o ataque. Houve no Brasil uma divisão, por quase 20 anos, entre os volantes que marcavam e os meias que jogam no ataque. Desapareceram os organizadores, passadores de bola. Kroos não teria lugar no futebol brasileiro, porque não é nem o volante marcador, nem o meia ofensivo. Aos poucos, estamos criando a preocupação de juntar o meio-campo e formar jogadores de talento de uma intermediária a outra. Mas ainda não conseguimos. Os titulares da seleção são Paulinho e Renato Augusto. Renato, aliás, tem jogado bem e me surpreendido. Mas eles não jogam, hoje, em times médios da Europa. Têm qualidades, mas não têm talentos como organizadores. Vai jogar o Giuliano: quem é o Giuliano para jogar de titular na seleção? O centroavante é outra questão. Há muito tempo não tem. O Gabriel Jesus é uma esperança, embora não seja um centroavante.
Você divide o livro entre uma era de encantamento, outra de conflito entre o científico, a força e o talento, e uma era de conciliação. O futebol de hoje, no mundo, é melhor do que há 20 anos, por exemplo?
Não tenha dúvida. O período de 1975 a 1995 ou 2000 foi muito ruim. Claro que tinha ilhas de bom futebol. As Copas de 1978 a 2002 foram fracas. A de 2014 dá de dez a zero. Houve supervalorização da parte física, da tática e de um jogo sem invenção. E com o tempo foi se ajustando. Hoje, os jogos têm outro nível. Os três pontos por vitória, a proibição de atrasar bola para o goleiro, tudo isso foi somando. A Europa se preocupou muito em melhorar a qualidade do espetáculo. Na Copa de 2006 eu percebi que o futebol mudara, havia mais preocupação em jogar com qualidade. E, neste período de reinvenção, o Brasil ficou para trás, demorou a recuperar o tempo perdido.
A velocidade do jogo hoje é muito grande. É possível traçar comparações entre jogadores de diferentes eras num jogo tão diferente?
É impossível discernir com tanta certeza. O jogo mudou mesmo, é difícil transportar eras. O que não impede que os grandes talentos de outras épocas jogassem hoje. Não tem como imaginar que o Pelé não jogaria hoje com a pujança que tinha. O talento continua presente em todas as épocas.
No livro, você comenta que o país viveu, após a Copa de 1966, uma depressão. Este processo não é cíclico no Brasil? Será que não exageramos no pós-Copa de 2014?
Não há dúvida que isto ocorre. Após a Copa de 66 só se falava do fim do futebol arte no Brasil. Nelson Rodrigues, que não entendia de futebol, começou a falar dos idiostas da objetividade, só se falava na correria, na velocidade. Porque os ingleses tinham inovado o futebol na Copa, uma mudança drástica, uma velocidade diferente. Surgiu a ideia de que o futebol brasileiro tinha acabado. Mas aí tem o detalhe: Pelé ainda era jovem e começavam a se destacar Jairzinho, Gérson, Rivelino, Carlos Alberto. Com potencial para se tornarem grandes jogadores do futebol mundial. Nos últimos anos, após Romário, Ronaldo e Ronaldinho, ficou um vazio. Só com o Neymar. Agora estão surgindo jogadores bons.
Quais você destaca?
O Brasil tem jogadores de defesa no nível dos melhores do mundo, a exceção do goleiro. E tinha o Neymar de espetacular. Para ficar no nível da Alemanha e Espanha, faltavam meias e atacantes. Hoje, tem dois jogadores pelos lados, Douglas Costa e Willian, no nível dos melhores. Evoluíram, amadureceram. Mas o Brasil só vai ser um time de primeiro nível com um craque no meio-campo. Isso é questão de formação. Mas, no nível de seleções, estamos quase no nível dos melhores, muito próximos. Barcelona, Real Madrid e Bayern são melhores do que qualquer seleção. As outras seleções têm deficiências também.
Então o Brasil pode chegar à Rússia com chance de ganhar a Copa?
Com certeza, o Brasil vai disputar a Copa com chance de ganhar. Com os defensores que temos, com Neymar e outros bons jogadores. Falo no livro que não é coincidência, existe uma razão pela qual, a cada 12 anos, o Brasil teve chance de formar um grande time. Pega 58, depois 70, 82, veio 94 que não foi tão espetacular mas foi uma geração brilhante, e vem 2006, que deu a impressão, quando venceu a Copa das Confederações de 2005, que seria uma repetição de 1982 ou 1970, pelo nível de futebol jogado. Mas não aconteceu na Copa. Os jogadores vão amadurecendo, então há expectativa de que em 2018 a gente tenha grande time.
Tem grande chance e acho que, provavelmente, vai se tornar o segundo maior jogador da história do futebol brasileiro, só atrás de Pelé. Acima de Ronaldo, Romário, Zico. É questão de contnuar fazendo o que faz. Está cada vez melhor. É impressionante como ele faz tudo bem. Como o Pelé. Não estou dizendo que é um Pelé. Pelé tinha todas as qualidades necessárias a um grande atacante em altíssimo nível, um pouco diferente do Messi, que é um espetáculo, mas não chuta de direita, não é alto ou forte para fazer gol de cabeça. Cristiano Ronaldo não tem a habilidade do Neymar. Já o Neymar faz tudo muito bem, é veloz, dribla com as duas pernas, chuta bem com as duas pernas, tem inteligência muito grande, dá passes espetaculares. Impressionante, é um dos melhores batedores de escanteio do mundo, cobrador de falta. No Barcelona ainda tem que pedir bênção ao Messi. Na seleção vai fazer muito gol de falta. A única coisa que tinha medo é que ele precisava, e está aprendendo, a saber o momento exato de tentar as grandes jogadas. Teve um período, como pegava muita moleza no Santos, contra os times brasileiros, pegava a bola e driblava dez vezes cinco ou seis. Lá no Barcelona não consegue. Tem que saber o momento de tentar o individual. Começou a driblar demais, sofria falta ou perdia a bola. E criava problema emocional, brigava com o marcador, se impacientava. Isso continua até hoje mas tem melhorado.
Ele pode ser melhor que o Messi?
Hoje acho o Messi melhor, tem talento ainda maior, discernimento das jogadas e decisões. Com mais sabedoria e lucidez nas decisões. Neymar tem fundamentos tão bons quanto Messi, mas Messi é mais cerebral. Se vai chegar a passá-lo, não sei. Messi já é o segundo maior jogador da história do futebol.
Como vê o trabalho do Tite?
Gosto muito. Evidente que há um exagero, às vezes. Há momentos em que ele fala uma coisa óbvia e "ohhh Tite!". O Brasil tem esses exageros, da depressão à euforia. Mas tenho esperança de que o Brasil tenha um grande time, ganhe a Copa jogando ótimo futebol em 2018.
Você faz, no livro, elogios ao trabalho do Zagallo em 1970. Cita momentos na história em que treinadores brasileiros foram vanguarda. Por que nossos treinadores perderam esta condição?
Ocorrem várias coisas. No nível de clubes, antigamente estávamos no padrão do que havia de melhor no mundo. Aos poucos, o crescimento econômico da Europa e a contratação de jogadores nos colocou numa segunda ou terceira divisão. Isto gera consequências, os técnicos passam a ser de segunda ou terceira divisão também. Em seleção isto não acontece porque conseguimos formar muitos jogadores de alto nível. Mas do ponto de vista da estrutura, da economia, o futebol que se joga no país é um futebol atrasado. Tite talvez seja uma exceção. Eu entendo que a regra deveria ser a seguinte: o treinador da seleção brasileira deveria ser um técnico de amplo prestígio na Europa. Tite tem sido inovador. Quando o Corinthians foi campeão mundial, passou a jogar da mesma forma que os grandes clubes da Europa. Era uma exceção aqui. Mas está mudando. Após a Copa melhorou a visão coletiva do jogo. Há pouco tempo, estavam totalmente defasados.
No livro, você lembra um momento da carreira em que foi fazer uma propaganda e diz: "Senti-me um idiota". Conseguiria viver no mundo das celebridades atuais?
Essas coisas me incomodam, gosto de distância disso. Teria dificuldade, sim. Mas, é claro, a minha formação é diferente dos meninos que estão nascendo hoje. São gerações diferentes. Nunca me adaptaria pelo que sou, estou fazendo 70 anos. Não tenho como virar outra pessoa, virar outra personalidade. Mas se eu nascesse hoje, podia ser diferente. Talvez fosse criado de outra forma.
Mas nunca teria a vaidade de um Cristiano Ronaldo...
O ideal era ter mais gente se manifestando e participando. Mas eu só não acho certo cobrar que atletas sejam pessoas especiais. Eles são pessoas que, em geral, estão preocupadas com seus ganhos, sua vida. Como é a maioria das pessoas comuns. Mas nós temos, para eles, uma cobrança como se fossem pessoas diferentes da média. Agora, no atual momento do futebol brasileiro, essa roubalheira toda, houve uma chance para os jogadores se manifestarem. Tentaram com o Bom Senso, mas talvez tenha sido pouco. Há um medo, um receio. Mas não podemos achar que, por serem atletas e famosos, que têm obrigação de fazer isso.
O futebol vive de visões antagônicas do jogo, por exemplo, nos choques entre Guardiola e Simeone. Tem mais valor a vitória com beleza? Ou o resultado justifica qualquer estratégia?
O que me fascina é ganhar jogando muito bem, dando espetáculo, com grandes talentos. Esta tem que ser a procura. E não ficar dividindo uma coisa ou outra. Mas valorizo um técnico como Simeone, que com menos talento consegue jogar e ganhar dos melhores do mundo. Tem que valorizar a qualidade de um técnico excepcional. Mas você pega técnicos como Guardiola, que tem por objetivo jogar um futebol espetacular e ganhar. Só que isso é possível apenas com grande talento. Eu valorizo técnicos como Guardiola, que têm a preocupação em dar espetáculo. Mas também quem consegue jogar e ganhar mesmo com qualidade menor.
A chama de sua paixão pelo futebol se mantém intacta?
O tempo que fiquei fora, entrei na medicina para valer, com dedicação total. Então, neste tempo o futebol ficou de lado. Não sonhava com futebol, mas também não deixei de gostar dele. Apenas ficou de lado. Ao voltar a trabalhar, novamente voltei a gostar e me apaixonar.
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